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Capitulo 1 – Anne

Atualizado: 3 de fev. de 2023

- Beatriz Figueira


O Lorde Phineas Buttsy executou sua “caça” no pátio mais uma vez. Todos os empregados da casa são obrigados a ficar de pé nas escadarias para assistir. Apesar da mordaça e dos membros imobilizados por cordas ela resistiu bastante, foram necessários três golpes de porrete para apagá-la. O sangue respingou no chão de pedra, dando origem a manchas de diversos formatos. Já faz meia hora desde que Lady Eleanor ordenou que eu limpasse a bagunça que seu marido fez. Meia hora esfregando sangue seco de traidores. “A caça”, como chamamos aqui, é uma cerimônia de execução que acontece de forma velada na província, praticada somente por autoridades, sem o conhecimento direto da coroa, mas financiada pelos nobres em prol de sua manutenção. Os líderes das grandes famílias de cada uma das 7 províncias são responsáveis por aplicar a “lei do caçador”, aqueles que forem suspeitos de conspirar a favor da Besta devem sofrer pena de morte pelas mãos do governador de suas terras, em frente a testemunhas. As testemunhas tratam de relatar o assassinato a todos aqueles que pensarem em trair a coroa e o pavor coletivo se encarrega de manter a população na linha. A última coisa que os poderosos da nobreza querem é que ele tome o poder. Para mim tanto faz se A Besta assumir o trono, não teria um grande impacto em minha vida. Se os Buttsy caírem, outra família rica vai ocupar seu lugar e serei tão invisível para eles quanto fui para os Buttsy. Todos os súditos são. No momento a última coisa que eu queria era ter que limpar esse chão.


Agora são quatro da tarde e Lilá, a filha dos patrões, deve estar experimentando novos vestidos para o brunch de amanhã, em homenagem a alguns antigos moradores da província que adquiriram alta posição na coroa. Quem me dera ter tanto tempo de sobra. Loira, de pele tão branca que beira ao doentio, nariz de tamanho médio, olhos castanhos rodeados por cílios ralos, e lábios finos, Lilá não era exatamente um colírio para os olhos. Sua postura de bailarina era sua melhor característica. Não posso falar muito sobre os aspectos de sua personalidade, se ela trocou mais de 10 palavras comigo durante todo o tempo que convivemos é muito. Por mais incrível que possa parecer, Lilá não é aquele tipo de garota. Moramos sob o mesmo teto desde que nasci, frequentamos a mesma escola, mas nem mesmo comemos no mesmo recinto. Nós nunca fomos ou seremos o que se pode chamar de amigas, mas ela nunca foi cruel como as outras garotas. Afasto esses pensamentos ao sentir uma fisgada dolorosa nas costas. Meu corpo está exausto. Paro de esfregar a fim de encontrar uma posição melhor para terminar a tarefa.


- Parou por quê, princesinha? - A voz estridente, como uma gralha, pertence a Isabelle Anderson, uma das amigas de Lilá. Tão cruel quanto bonita, seu único defeito era uma cicatriz na testa, próxima a raiz dos cabelos, que ela escondia com a franja. Toda essa beleza era desperdiçada naquele verdadeiro poço de arrogância – Sem descanso pra você milady, é pra isso que ganha, e não levante essa fuça suja para mim! Quem sabe semana que vem uma das outras empregadinhas não vai estar lavando os seus restos desse chão?


Queria ter respondido à altura, mas tenho certeza que enfiar sabão na boca daquela ruiva me custaria o teto sob a cabeça. Os anos escolares foram um verdadeiro pesadelo por causa de Isabelle, ela odiava ter que estudar na mesma escola que a “princesa pano de chão”. Me contive em trincar a mandíbula e continuar esfregando. Só preciso aguentar a vadia mais um pouco, ela irá partir para passar os próximos 3 anos na Corte, com uma tia. Tudo para conseguir se amigar com algum nobre, pelo menos é o que todos estão comentando. Azar do nobre que se envolver com uma víbora como ela. Felizmente ela logo entrou na casa, me deixando em paz para continuar o cansativo trabalho.


Minha mãe também foi empregada dos Buttsy. Tudo correu razoavelmente bem para ela até conhecer um maldito homem durante uma das festas na propriedade e engravidar. Nove meses. Foi todo o tempo em que eu e minha mãe estivemos juntas em 20 anos da minha vida. Eu não a culpo por me deixar, sei que seria difícil uma mulher sozinha, sem família, manter uma criança fruto de estupro com o salário de doméstica. Eu mesma não suportaria. Os Buttsy me toleraram em sua casa porque o diabo violador era seu convidado, ele desapareceu logo depois e nunca deu as caras, porém o crime cometido na mansão não era algo bom para a imagem da família de um barão. Me deram alimento, roupas e uma boa educação particular, mas quem me criou foram os seus funcionários, que se revezavam para me auxiliar, e não demorou muito para que eu também me tornasse um deles.


Quando terminei a limpeza do pátio, o grande sino da igreja, que fica a poucos quarteirões da mansão, badalou avisando que eram 6 da tarde. O sol já começava a dar os indícios de sua despedida. Recolhi os materiais de limpeza e me apressei em direção a ala das empregadas, precisava me trocar antes de servir o jantar. Tirei o uniforme sujo e o joguei na lixeira, não havia como salvá-lo das manchas de sangue.


E lá se foi mais um dia. Depois do jantar da família, recolhi a mesa, auxiliei na secagem dos pratos e finalmente fui descansar um pouco. Não jantaria nada naquela noite. Os dias de caça sempre me fazem perder o apetite. Não percebi na hora, mas calos em minhas mãos romperam enquanto esfregava as pedras. Agora que estou sentindo uma ardência terrível nessa área, agradeço aos céus por amanhã ser o brunch, fiquei encarregada da recepção, vai ser ótimo poder tirar uma folga do trabalho braçal. As festas dos Buttsy, apesar dos espetáculos de futilidade, são o meu conceito de quebra de rotina. Trabalhando aqui, tenho a sensação de viver em looping, as cenas ficam se repetindo e repetindo. Momentos como esse brunch são descontraídos, as pessoas ficam felizes e eu posso fingir estar também. Esse pensamento fica rodando na minha cabeça enquanto me preparo para dormir e pego no sono refletindo sobre o dia em que não precisarei fingir.


As campainhas da ala dos empregados estão a todo vapor, Lady Buttsy e sua filha não se cansam de pressioná-las para nos chamar. Hoje vai ser um dia especialmente cheio, falta apenas uma hora para o horário marcado para o brunch e estou correndo para pegar as listas de convidados com a governanta. Devo conferir cada nome na lista e encaminhá-lo ao seu devido lugar. Paro em frente a uma porta de madeira escura, mais próximo dos aposentos da família e bato suavemente.

- Entre.

Empurro a porta, que se abre fazendo um rangido. Levanto o olhar em direção a mulher pequena que está sentada na mesa a minha frente. Martha tem por volta dos 45 anos, não é tão velha como a maioria das governantas, seu cabelo castanho claro já possui fios grisalhos, porém são raros demais para que ela se incomode em pintar. Ela me analisa de cima a baixo com um semblante de reprovação.


- Isso não vai servir.


- O “quê” não vai servir?? – Pergunto alarmada. - Tem algo de errado comigo? – Espero que ela não me troque de função, meus calos ainda não cicatrizaram, trabalhar na recepção seria a melhor opção.


- Esse uniforme está muito desgastado, - Disse Martha - Lorde Buttsy certamente não vai querer que seus convidados pensem que ele está sem condições de vestir seus funcionários. Onde está o seu reserva?


- Tive de jogar fora ontem, fiquei encarregada da limpeza da caçada.


Martha assentiu com a cabeça em sinal de compreensão. Ela se levantou da cadeira e foi até um dos armários da sala.


- Pois bem, tome – Ela jogou um pacote em minha direção, consigo pega no ar. – O “M” deve servir em você. Agora pegue as listas e vá se trocar, depois vá para o pátio externo e aguarde a chegada dos convidados.


Faço o que ela pediu e vou me aprontar. Ao vestir o uniforme, percebo que é diferente dos outros usados no dia-a-dia. Esse é um tailleur azul marinho. Provavelmente é a coisa mais bonita que já vesti. Quando olho no pequeno espelho da cômoda, me sinto linda. A beleza vem acompanhada de um sentimento de pesar. Tem tantas coisas que eu queria conquistar. Sempre tive que lutar por mim. Em momentos como esse percebo que estava apenas me contentando em viver assim, sobrevivendo. Nada pelo que passei foi por escolha própria, pelo contrário, eu nunca tive escolha. Tantos anos solitários e amargos que eu podia ter interrompido saindo pela porta e buscado opções, tantos calos, dores e humilhações. Isso não é vida para ninguém. Eu mereço muito mais.


E vou fazer de tudo para conquistar o que eu mereço.



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